2. A sucessão do sucessor ( 1 )
Ficção política
Furioso com tudo e todos, vá-se lá saber porquê, Erro Só-dizes, o infeliz e contrariado sucessor de Antónimo Tu Erres na difícil tarefa de dirigir o Partido Surrealista, entrou de rompante pela sede nacional do partido e, subindo a três os degraus da escadaria principal, alcandorou-se ao piso superior e percorreu três corredores e sete umbrais de porta. Chegado ao seu gabinete de chefe supremo da surrealista gente, atirou-se para a respectiva cadeira, a já referida de chefe, atrás da secretária limpinha de papelada, deu um suspiro para retomar o ritmo da respiração alterado pelo cansaço que lhe provocara a corrida desarvorada em que viera e gritou a pulmões plenos:
- Porra! Não aguento mais as tretas destes palermas! – e, tendo parado um pouco para recuperar o fôlego, levado pela explosão de ira e desânimo, logo prosseguiu – Isto é demais, chiça! Não há traseiro que aguente! Vou mandá-los todos pr’ó…
- Eh, pá! Toma lá cuidado, caneco! Ainda te dá uma coisa má… E, depois, como é que a gente ficava? – acudiu, em evidente sobressalto, Alameda Tantos, presidente do partido, que passava ali perto e apanhou enorme susto com a alta grita do camarada.
O que é certo é que, com a interrupção, não só evitou uma apoplexia a Erro Só-dizes, como nos poupou a nós, que nenhuma culpa temos no cartório dos pecados surrealistas, o trespassar dos tímpanos com algo que o secgeral surrealista acabasse por dizer e de que a estas horas, por certo, já estaria arrependido. Sim, porque isto de usar terminologia de tasca não é coisa que políticos surrealistas gostem de fazer. Para lá do já corriqueiro e inofensivo “palermas” e outros mimos similares, que apenas servem para mais facilmente se criar um clima de cosmopolita descontracção e colorir o discurso, evitando, deste modo, que se mostre demasiado cinzentão o que, entendem eles, não casa bem com o seu feitio, são incapazes de avançar. Os princípios que os enformam não lhes permitem tais liberdades.
- Como é que ficavam? Homas’essa! Então como é que ficavam?! Ficavam, pronto! – replicou o secgeral, impaciente – Eu não tive também que me desenrascar sem o apoio de ninguém, quando o outro deu à sola, na hora do aperto?... – deixou no ar, em jeito de quem espera a pergunta, para, depois, atacar em força.
Mas a pergunta não veio, já que Alameda Tantos, sempre tão perspicaz, embora não tivesse dormido bem na noite anterior, por causa de uns carapaus de escabeche que lhe terão caído mal, não deixava de o estar, comme d’habitude, pelo que logo entendeu que Erro se referia a Antónimo Tu Erres, político de excelsas virtudes e muito sui generis que, uns tempos antes, agudo de visão e pouco afoito de peito, vendo que as coisas estavam a ficar sem conserto, aproveitara uma curva da estrada para se pôr ao fresco, abandonando a caravana em perigoso desgoverno.
- Ó Erro, vê lá se t’acalmas, que isso ainda acaba mal para ti. Não te esqueças de que já não és um rapaz e, portanto, convém não exagerares nas comoções… – o presidente do Partido Surrealista, também conhecido pelas iniciais PS - o partido, claro, não o presidente -, tudo fazia para aquietar o secgeral, mas a coisa estava dura de roer – Ora a minha sina, hein? Por que raio havia de ter-me lembrado de aqui vir hoje? Já não tenho idade nem vida para estas caturrices, c’um escafandro! – desabafou, já agastado também com tudo aquilo.
- Ah, sim?! Com qu’então, tu já não tens idade nem vida para me aturar? – repontou o outro - E eu tenho que ter idade, vida e pachorra para vos aturar a todos, palermas d’um raio, é?
- Erro… Errinho… rapaz! Atão, agora tás a insultar-me também? Pela tua rica saúde tem tento na bola, qu’eu sou paciente, mas já está a começar a faltar-me a elegância de estilo – regougou o outro, que é elegante, sim senhor, mas com limites, porra! E, para não dar tempo ao Erro de replicar no estado em que estava, o que podia transformar a conversa em algo de bem desagradável, logo sugeriu:
- Ouve cá: não queres que eu diga à tua secretária que te traga um copo de água tépida com um pouco de açúcar, hein? Olha que, para os nervos, é espectacular! Já a minha avozinha dizia que água em cima da fervura e mel no fel, são mezinhas com cartel...
Erro olhou para o camarada de forma tão enviesada e tão… tão… que aquele logo deitou as mezinhas pela janela fora. Tão desastradamente, porém, que tudo foi cair em cima de um circunspecto cidadão que passava e que, por infausto acaso, era simpatizante do PS. Acontece que o incauto passante, ficou “piurso”, como se calcula. E, como se tal circunstância já não bastasse, imagine-se que acabara de tirar uma licenciatura de praia de elegância vocabular proto-portuguesa. A catilinária, a que de imediato se entregou, foi um verdadeiro sucesso no Largo do Trato e circunvizinhanças. Pena é que não possa ser aqui transcrita! Não o permitiriam as regras do bom senso e da vida em sociedade, em geral, da comunidade surrealista, em particular. Aliás, nem o cronista tem na memória capacidade de armazenamento suficientemente ampla para reter tamanha quantidade de imagens, de fino recorte literário, da mais preclara e requintada oratória. Segue-se que, de ciência certa se ficou a saber, por em tom altissonante anunciado, que, logo ali, por força de um momento de distracção presidencial, o PS perdeu um eleitor seguro. Alameda Tantos apressou-se a fechar a janela, à socapa, não fosse o sujeito ser tomado de algum assomo de vindicta e, descobrindo o agressor, involuntário, é certo, viesse por aí acima pedir satisfações e entregar algo que não se adaptasse bem, à consabida postura de serenidade e concórdia que ele, Alameda Tantos, sempre, tão digna quanto convictamente, observara.
- Eu quero é que a tua avozinha se… dane, tás a óvir, ó Alameda? Fora a senhora que não tem culpa, coitadinha! – repontou o ferido secgeral.
- Ah!... Ah!... Vá lá, vá lá... Emendaste a tempo!... – Alameda, por momentos esquecido da sua postura social de serenidade e bom viver (não confundir com von vivant, por favor, que isso é já outro departamento...), teria estado mesmo a ponto de esborrachar o nariz do outro, mal ouvira a menção desprestigiante para com a avozinha, que Deus lá tenha em merecido descanso! É que Alameda é elegante e sereno, como dizia Tineiro Arremedo do "povo", mas, em casos de família, não leva desaforos para o lar. Venha ele que quem vier, por muito camarada que seja. Ora essa! Camaradas, camaradas, mas as avozinhas são à parte! Homas’essa!... Tal não tá o farsante!
- Pois foi, Alameda, desculpa lá, ó pá! Excedi-me... – desculpou-se o secgeral, meio atarantado – Esta coisa anda a dar-me cabo da cabeça e dos nervos, caraças! Não aguento mais!...- Mas qual coisa, camarada? O que é que te aflige assim tanto? – quis saber o presidente surrealista, já seriamente preocupado com o estado de agitação em que o amigo se encontrava, pronto para ser tomado por um estado de nervos de que dificilmente algum dia se recomporia.- Pois qual coisa, Alameda, qual coisa?! Qual coisa, perguntas tu?! Quais coisas, c’um mil raios que te partissem! São tantas, tantas… Ai de mim, que não nasci para isto!... Bem me dizia a minha mãezinha…
- Pois quê, Erro, a tua mãezinha já te dizia que não tinhas jeito para a política? – admirou-se o amigo do amigo que estava em vias de cruzar o no return point de ataque de nervos monumental e irremediável - Olha que, sim, senhor, a tua mãezinha era uma senhora de uma preclaridade notável… Sim, senhor… Nunca pensei!
- P’s’tá claro! Tu nunca pensas, catarino! – ribombou o outro – Se pensasses não dizias coisas sem nexo e que não correspondem minimamente à verdade – parou um momento, para respirar mais profundamente, após o que prosseguiu – Claro que a minha mãezinha não me dizia nada disso, porque a minha mãezinha era uma pessoa muito senhoril e prendada. Não proferia obscenidades dessas, tal não tá o palerma! – e, fungando – O que a mãezinha disse sempre foi que eu tinha que estar preparado para as contrariedades da vida, que são muitas, porque há muitos sacripantas por aí, à solta, e que até o melhor era nunca me meter na política.
- Ah, sim?! A tua mãezinha disse-te isso? Senhora de bom aviso… - fez uma pequena pausa e logo disparou, de forma tal que sobressaltou o interlocutor - Então, porque é que não te preparaste, carago? – Alameda também sabia, oh, se sabia!, ser verrinoso.
Erro Só-dizes, olhou o outro à socapa, de viés, mas preferiu fazer de conta que nada ouvira e continuou:
- Imagina tu que já não me bastava ter tido que aturar a fuga do outro, quando me deixou com o menino nos braços e com as fraldas todas borradas, de tal modo que ninguém lhe quis tocar, e, depois, ter que vos aturar, durante este tempo todo, com cada um de vocês a ver qual vencia o campeonato de me deitar da carroça abaixo…
- Eh, pá! Não digas isso… - acudiu o presidente surrealista, por entender que devia dizer algo, para não deixar a coisa azedasse mais do que já estava. Pior a emenda do que o soneto.
- Não digo isso?! Pois tu atreves-te? Depois de tudo o que se tem passado ao longo destes anos, tu ainda tens a suma lata de me quereres calar?! Olha qu’eu não respondo pelos meus actos, tás a óvir, ó quê? – saltou aquele que o outro parecia querer calar – Não calo, não! Não me calas qu’eu não deixo. Ora o trota, hein?! Chega o que chega! Tenho que desabafar, pois então! Se não, arrebento, caraças!
- Bem, se assim é, desabafa lá. Pode ser que te faça bem…
- Claro que desabafo! Tamos num país democrático e todos têm direito a desabafar. Eu também sou gente, catarino! Não sou menos do que todos esses palermas que para aí andam a mandar bocas foleiras nas TVs e em tudo o que é sítio, agora até nos blogs ou logs ou lá que é isso... – parou um pouco, para engolir a saliva que já lhe espumava nos cantos da boca e prosseguiu – Não me bastava já tudo isso. Como se fosse pouco... – gritava em voz alta, em perpétuo movimento, entre a janela que dava para o Largo do Trato, e a porta de acesso ao gabinete, do lado contrário, numa agitação incontrolada – ...agora ainda me aparece Sua Excelência a dar-me uma facada nas costas. Apre, que isto é o cúmulo! E há backside é que aguente uma destas?
- Eh, eh, eh, eh, eh Erro, meu amigo! Pára aí! “Auguenta” os “cavais”, pá! Qu’é que tu tás a querer dizer com essa de Sua Excelência? – Alameda bem calculava o que era, mas… - Achas então que Sua Excelência fez algo que não devia? Qu’é qu’ele te fez?
- Qu’é qu’ele me fez?... Qu’é qu’ele me fez? Homas’essa! Atão tu não viste? – estava em sério risco de apoplexia fulminante… - Atão, depois de termos sido compagnons de route tantos anos, depois de nele termos todos votado e eu o ter sempre apoiado tanto, o Torce Cipaio faz-me uma destas?! Atão isto faz-se a um camarada com’eu?
- Bem… realmente… mas tu sabes como estas coisas são. Nem sempre… nem sempre o que a gente quer… a gente quer… pode ser feito… Há as aparências… É preciso salvar as aparências. Pelo menos, pá! – tentou Alameda, conciliador, mas sem sucesso perceptível.
- Quais aparências, quais iludências, quais quê! Ele só tinha que dar-me condições para que eu pudesse chegar a Primeiro! – e, continuando - Foi para isso que a gente votou nele. Ele é o nosso presidente, não o dos outros, chiça!
- Ó Erro, Errinho! Cuidado, rapaz! Fala baixo, se não lá fora ainda te ouvem… - assustou-se Alameda - Já viste a barracada que era se ouvissem lá fora o que estás a dizer?
- E eu lá tou ralado com isso, pá?, e eu lá tou ralado com isso? – retrucou Erro, completamente destrambelhado – Depois desta, eu lá quero saber que ouçam ou não ouçam! E até é bom que ouçam, porque assim fica tudo esclarecido.
- Pois sim, mas não nos convém…
- Convenha ou não convenha, estou-me marimbando, pois atão! O Cipaio não tinha o direito de fazer isto… – parou, de supetão, junto da tal janela e, completamente desvairado, deu um soco no vidro que se estilhaçou e caiu em pedaços, os quais foram atingir cidadão que passava em baixo. Erro, que do infeliz sucesso não se apercebeu, rematou: - … de dar o lugar ao palerma do Pêro Sem Trama Topes, c’um caneco!!! Um gajo que só quer é…
- Cala-te, Erro, por favor cala-te! Não dês cabo de tudo, homem – Alameda levantou-se em sobressalto do sofá em que descansava as costas já alquebradas pela idade, e dirigiu-se à janela, junto da qual estava Erro, de tudo alheado pela concentração máxima na sua desdita. Olhando para fora e para baixo, deu de caras com cidadão alvo da agressão involuntária, de cabeça ensanguentada pelos cacos dos vidros da janela que Erro quebrara no seu momento de grande exaltação anti-cipaista. Recolhendo-se de imediato, acrescentou: - Olha, pronto, não vale a pena. Tamos lixados. Já deste mesmo cabo de tudo!
- Dei cabo de tudo, como? – indagou Erro Só-dizes, intrigado – Como é que dei cabo de tudo! Não me digas que, lá por estar danado e, se calhar, me ir embora, o PS vai ficar perdido!?
- Não, não se trata de nada disso, homem! – esboçou sorriso de viés, disfarçadamente – Lá teremos que nos arranjar… Enfim, como pudermos – compôs ar circunspecto de conveniência – Mas o problema não é esse, o problema é que, com os vidros da janela que partiste, atingiste um cidadão que já não vai votar em nós. Lá perdemos outro eleitor. Como se não nos fizessem falta…
Erro assomou à janela, olhou para baixo e respondeu:
- Ora, ora! Isso tem lá alguma importância!…
- Ah! Não?! Ah! Não?! E então porquê? – quis saber Alameda.
- Ora porquê! Ora porquê! Se tomasses atenção às coisas, em vez de estares com a ideia fixa de me acusares de tudo e mais alguma coisa, como vocês sempre têm feito, logo verias que o tipo que está lá em baixo, com os cacos da janela no cocuruto - fez um compasso de espera, aguardando que o outro algo dissesse, para lhe espetar o florete bem fundo, mas, como o outro, fino d’um raio, se manteve caladinho… - é o mesmo que há bocado passava para cima. Quando tu atiraste fora as mezinhas da tua avó. Ora, como deves lembrar-te, logo naquele momento ele deixou de ser nosso votante. Portanto, menino, não venhas p’ra cá com tretas, qu’a culpa é tua e da tua avozinha, exclusivamente vossa. Tás a óvir, ó quê?!
Hernan Lopez
cronista de todos os tempos
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